O LIVRO

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segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Nossa História - Cálculos de Risco - ESCRAVIDÃO: Um negócio de risco, mas atraente e viável.

Para garantir o lucro da operação, traficantes de escravos contabilizavam custos e tentavam diminuir perdas, principalmente mortes




Fonte: Arquivo Histórico Ultramarino, Angola, caixa 178, documento 21
O tráfico de escravos não era a atividade mais lucrativa do mundo. Esse comércio demandava altos investimentos e envolvia riscos consideráveis. Nem todos o viam como uma atividade moralmente aceitável e havia outras áreas que podiam gerar lucros maiores, como o comércio de especiarias, tecidos, metais e pedras preciosas. Ainda assim, valia a pena: durante mais de três séculos o tráfico manteve-se como um negócio atraente e viável.
Desde meados do século XV, alguns africanos escravizados já vinham sendo transportados para a Europa. Mas o tráfico se transformou em negócio lucrativo somente quando os europeus espalharam a cana-de-açúcar nas Américas e nas ilhas do Atlântico – como Madeira e São Tomé e Príncipe – no final daquele século e no início do seguinte. O açúcar era considerado uma mercadoria de luxo, e o alto preço pelo qual era vendido cobria os custos da sua produção.
A produção do açúcar facilitava também a colonização de territórios onde os europeus demoraram a encontrar metais ou pedras preciosas. Oriunda das regiões tropicais do sudeste asiático, a cana-de-açúcar adaptou-se bem ao clima das ilhas atlânticas e das Américas, e serviu como principal artigo de exploração econômica em várias colônias, inclusive no Brasil.
Inicialmente, os europeus utilizaram mão de obra indígena para produzir açúcar, mas esbarraram na alta taxa de mortalidade entre os nativos, decorrente de doenças trazidas pelos próprios europeus. A solução foi recorrer ao trabalho escravo africano. A sociedade colonial passou a ver aquela mão de obra como superior à indígena, pois os africanos vinham de sociedades agricultoras, já estavam familiarizados com um modo de vida sedentário e tinham conhecimentos técnicos facilmente adaptáveis à produção de açúcar. O tráfico de escravos africanos também beneficiava os governos europeus pela renda que gerava com os impostos alfandegários.
Registros do Engenho Sergipe, na Bahia, demonstram que a transição da mão de obra indígena para a africana correu de modo relativamente rápido. Em 1572, cerca de 7% da população escrava daquele engenho era africana; em 1591, a proporção aumentou para 37% e em 1638 toda a população escrava do engenho provinha da África.
A utilização de escravizados africanos não ficou restrita à produção de açúcar. Das colônias inglesas na América do Norte às colônias espanholas no Rio da Prata, eles foram empregados em uma série de atividades, como o cultivo de algodão, arroz, café, índigo, tabaco, a extração de diamantes, ouro, prata, a indústria metalúrgica e a do óleo de baleia, além de comércio, pecuária e do setor de serviços em geral.
A extensa presença de escravos de origem africana nas sociedades do Novo Mundo chamava a atenção dos viajantes estrangeiros. John Luccock, um comerciante inglês que residiu no Brasil entre 1808 e 1818, notou que “parte tão considerável da população das colônias sul-americanas consiste de escravos, que cada novo distrito parece exigir alguma observação sobre o seu número, ocupação e tratamento”.
Para suprir as colônias com tantos escravos, e obter o máximo de lucro possível, os traficantes tinham que organizar as suas operações meticulosamente. O cálculo do valor final da venda de um escravo adulto, por exemplo, precisava levar em conta um detalhado orçamento dos custos da viagem negreira. Um desses documentos, produzido por volta de 1790, revela os cálculos de negociantes portugueses que pretendiam suprir a região Norte do Brasil com mão de obra escrava angolana, após a extinção do monopólio negreiro da Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão (1778).
O preço dos escravos na África era a maior despesa da operação. Gastos com comissões, fretes e impostos representavam quase um terço do valor final de um escravo. Perdas com mortes, inclusive na marcha entre o interior e a costa africana, fugas e doenças aumentavam o valor final de um escravo em pouco mais de 20%. Custos com o sustento e outras despesas refletiam apenas em cerca de 10% da transação.
Não entram nesse cálculo os custos com o seguro que muitos traficantes, especialmente britânicos e franceses, contratavam para protegerem as suas “mercadorias”. Muito menos a perda das famílias africanas cujos membros foram subtraídos de seu seio irreparavelmente. Ainda assim, os autores do orçamento julgavam que o que “arrasta [os comerciantes] a semelhante negócio, é só a lisonjeira expectativa de obter no transporte dos escravos a fortuna rara de ter menos mortandades, tanto em terra como no mar”.
A lucratividade do tráfico residia na quantidade de escravos transportados em relação ao diferencial do seu preço nos momentos da compra e da venda. Não havia muito o que fazer para controlar o preço dos escravos na África e nas Américas. Já a taxa de mortalidade variava de acordo com a saúde dos escravos, a sua alimentação e a duração da viagem. Se os traficantes conseguissem ludibriar a morte, poderiam não só cobrir o gasto estimado com as perdas em trânsito, mas também obter maior margem de lucro sobre os seus investimentos.
Pesquisadores, utilizando métodos sofisticados e um grande leque de fontes, demonstram que a taxa de lucratividade média do tráfico variava de acordo com a demanda e a rota. Em geral, os lucros eram maiores em rotas curtas e durante períodos de expansão do tráfico. Por exemplo, a taxa de lucratividade média no tráfico para o Rio de Janeiro, entre 1810 e 1820, teria sido de cerca de 19%. No comércio britânico, entre 1761 e 1807, ela variou entre 8% e 13%. No tráfico francês, entre 1713 e 1792, o lucro médio era de 10%, enquanto no holandês, entre 1740 e 1795, era de apenas 3%.

Essas taxas de lucro são maiores do que as de muitos fundos de investimentos atuais, mas não era sempre que elas vingavam. De todo modo, à medida que a demanda por mão de obra africana crescia, o tráfico ia se consolidando como investimento atraente. E a “lisonjeira expectativa” de ludibriar a morte, longe de se inspirar em questões humanitárias, movia a mais elementar ganância por lucros cada vez maiores.


fonte: artigo publicado pela "Revista de História da Biblioteca Nacional", por Daniel B. Domingues da Silva, que é professor da Universidade de Missouri, Estados Unidos, e autor de "The Atlantic Slave Trade from Angola: A Port-by-Port Estimate of Slaves Embarked, 1701-1867". International Journal of African Historical Studies, vol.46, no. 1, 2013.  

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